O TEMPO
"O tempo é o maior
tesouro de que um
homem pode dispor;
embora inconsumível,
o tempo é o nosso
melhor alimento;
sem medida que o
conheça, o tempo é
contudo nosso bem de
maior grandeza: não
tem começo, não tem
fim;
é um pomo exótico
que não pode ser
repartido, podendo
entretanto prover
igualmente a todo
mundo; onipresente,
o tempo está em
tudo;
existe tempo,
por exemplo, nessa
mesa antiga: existiu
primeiro uma terra
propícia,
existiu depois uma
árvore secular feita
de anos sossegados,
e existiu finalmente
uma prancha nodosa e
dura trabalhada
pelas mãos de um
artesão dia após
dia;
existe tempo
nas cadeiras onde
nos sentamos, nos
outros móveis da
família,
nas paredes
da nossa casa, na
água que bebemos, na
terra que fecunda,
na semente que
germina,
nos frutos que
colhemos, no pão em
cima da mesa, na
massa fértil dos
nossos corpos, na
luz que nos ilumina,
nas coisas que nos
passam pela cabeça,
no pó que dissemina,
assim como em tudo
que nos rodeia;
rico
não é o homem que
coleciona e se pesa
no amontoado de
moedas,
e nem
aquele, devasso, que
se estende, mãos e
braços, em terras
largas;
rico só é o
homem que aprendeu,
piedoso e humilde, a
conviver com o
tempo,
aproximando-se dele
com ternura, não
contrariando suas
disposições,
não se rebelando
contra seu curso,
não irritando sua
corrente, estando
atento para o seu
fluxo,
brindando-o antes
com sabedoria para
receber dele os
favores e não a sua
ira;
o equilíbrio da vida
depende
essencialmente deste
bem supremo, e quem
souber com acerto a
quantidade de vagar,
ou a de espera, que
se deve pôr nas
coisas, não corre
nunca o risco, ao
buscar por elas, de
defrontar-se com o
que não é;
por isso ninguém em
nossa casa há de dar
o passo mais largo
que a perna:
dar o
passo mais largo que
a perna é o mesmo
que suprimir o tempo
necessário à nossa
iniciativa;
e ninguém em nossa
casa há de colocar o
carro a frente dos
bois: colocar o
carro a frente dos
bois
é o mesmo que
retirar a quantidade
de tempo que um
empreendimento
exige;
e ninguém
ainda em nossa casa
há de começar nunca
as coisas pelo teto:
começar as coisas
pelo teto
é o mesmo
que eliminar o tempo
que se levaria para
erguer os alicerces
e as paredes de uma
casa;
aquele que
exorbita no uso do
tempo,
precipitando-se de
modo afoito, cheio
de pressa e
ansiedade,
não será
jamais recompensado,
pois só a justa
medida do tempo dá a
justa natureza das
coisas,
não bebendo do vinho
quem esvazia num só
gole a taça cheia;
mas fica a salvo do
malogro e livre da
decepção quem
alcançar aquele
equilíbrio,
é no
manejo mágico de uma
balança que está
guardada toda a
matemática dos
sábios,
num dos
pratos a massa
tosca, modelável, no
outro, a quantidade
de tempo a exigir de
cada um o requinte
do cálculo,
o olhar
pronto, a
intervenção ágil ao
mais sutil desnível;
são sábias as mãos
rudes do peixeiro
pesando sua pesca de
cheiro forte:
firmes, controladas,
arrancam de dois
pratos pendentes,
através do cálculo
conciso, o repouso
absoluto, a
imobilidade e sua
perfeição;
só chega a este raro
resultado aquele que
não deixa que um
tremor maligno tome
conta de suas mãos,
e nem que esse
tremor suba
corrompendo a santa
força dos braços, e
nem circule e se
estenda pelas áreas
limpas do corpo,
e
nem intumesça de
pestilências a
cabeça, cobrindo os
olhos de alvoroço
e
muitas trevas; não é
na bigorna que
calçamos os
estribos,
nem é
inflamável a fibra
com que tecemos as
tranças de nossas
rédeas,
pode
responder a que
parte vai quem
monta, por que é
célere, um potro
xucro?
O mundo das paixões
é o mundo do
desequilíbrio, é
contra ele que
devemos esticar o
arame das nossas
cercas,
e com as
farpas de tantas
fiadas tecer um
crivo estreito, e
sobre este crivo
emaranhar uma sebe
viva,
cerrada e
pujante, que divida
e proteja a luz
calma e clara da
nossa casa,
que
cubra e esconda dos
nossos olhos as
trevas que ardem do
outro lado;
e nenhum
entre nós há de
transgredir esta
divisa, nenhum entre
nós há de estender
sobre ela sequer a
vista,
nenhum entre
nós há de cair
jamais na fervura
desta caldeira
insana, onde uma
química frívola
tenta dissolver e
recriar o tempo;
não se profana
impunemente ao tempo
a substância que só
ele pode empregar
nas transformações,
não lança contra ele
o desafio quem não
receba de volta o
golpe implacável do
seu castigo;
ai de
quem brinca com
fogo: terá as mãos
cheias de cinza;
ai daquele que se
deixa arrastar pelo
calor de tanta
chama: terá a
insônia como
estigma;
ai daquele
que deita as costas
nas achas desta
lenha escusa: há de
purgar todos os
dias;
ai daquele que
cair e nessa queda
se largar: há de
arder em carne viva;
ai daquele que
queima a garganta
com tanto grito:
será escutado por
seus gemidos;
ai daquele que se
antecipa no processo
das mudanças: terá
as mãos cheias de
sangue;
ai daquele, mais
lascivo, que tudo
quer ver e sentir de
um modo intenso:
terá as mãos cheias
de gesso,
ou pó de osso, de um
branco frio, ou quem
sabe sepulcral,
mas sempre a negação
de tanta intensidade
e tantas cores:
acaba por nada ver,
de tanto que quer
ver;
acaba por nada
sentir, de tanto que
quer sentir; acaba
só por expiar, de
tanto que quer
viver;
cuidem-se os
apaixonados,
afastando dos olhos
a poeira ruiva que
lhes turva a vista,
arrancando dos
ouvidos os
escaravelhos que
provocam turbilhões
confusos,
expurgando
do humor das
glândulas o visgo
peçonhento e
maldito;
erguer uma
cerca ou guardar
simplesmente o
corpo, são esses os
artifícios que
devemos usar para
impedir
que as
trevas de um lado
invadam
e contaminem a luz
do outro, afinal,
que força tem o
redemoinho que varre
o chão e rodopia
doidamente
e ronda a
casa feito fantasma,
se não expomos
nossos olhos à sua
poeira?
é através do
recolhimento que
escapamos ao perigo
das paixões,
mas
ninguém no seu
entendimento há de
achar que devamos
sempre cruzar os
braços,
pois em
terras ociosas é que
viceja a erva
daninha: ninguém em
nossa casa há de
cruzar os braços
quando existe a
terra para lavrar,
ninguém em nossa
casa há de cruzar os
braços quando existe
a parede para
erguer,
ninguém ainda em
nossa casa há de
cruzar os braços
quando existe o
irmão para socorrer;
caprichoso como uma
criança, não se deve
contudo retrair-se
no trato do tempo,
bastando que
sejamos humildes e
dóceis diante de sua
vontade,
abstendo-nos
de agir quando ele
exigir de nós a
contemplação, e só
agirmos quando ele
exigir de nós a
ação,
que o tempo
sabe ser bom, o
tempo é largo, o
tempo é grande, o
tempo é generoso,
o tempo é
farto é sempre
abundante em suas
entregas: amaina
nossas aflições,
dilui a tensão dos
preocupados,
suspende a dor aos
torturados, traz a
luz aos que vivem
nas trevas,
o ânimo
aos indiferentes, o
conforto aos que se
lamentam, a alegria
aos homens tristes,
o consolo aos
desamparados, o
relaxamento aos que
se contorcem, a
serenidade aos
inquietos,
o repouso
aos sem sossego, a
paz aos
intranqüilos, a
umidade às almas
secas;
satisfaz os
apetites moderados,
sacia a sede aos
sedentos, a fome aos
famintos,
dá a seiva
aos que necessitam
dela, é capaz ainda
de distrair a todos
com seus brinquedos;
em tudo ele nos
atende, mas as dores
da nossa vontade só
chegarão ao santo
alívio seguindo esta
lei inexorável..."
Raduan Nassar
Em o livro Lavoura
Arcaica
SITE
AROMAS
DA LUZ
Webmaster:
Maria
Inês de
Paula
Bomfim
Todos os
Direitos reservados.
10 anos na net ©
Site Aromas da
Luz
|